16 julho 2015

Saídas a dois


Estava tudo combinado para aquele final de tarde: saía do trabalho direta à escola, entravamos juntos no carro, sorridentes e enamorados, e seguíamos para o nosso jantar a dois, num qualquer centro comercial à mesa de um qualquer restaurante de fast-food.

Para mim, a mãe, e para ele, o filho, aquele era um encontro planeado, programado, desejado e ansiado. Então, o final do dia de trabalho custou mais a chegar… O dia dele, na escola, teimou em alongar-se. E o nosso final de tarde, a dois, escapou em escassos minutos assemelhados a muito pouco, como só acontece com os momentos bem passados.

Naquele dia eramos só nós, de mão dada pelos corredores do centro comercial, a olhar montras displicentemente, a escolher entre hambúrguer e bitoque, a decidir entre a mesa da janela ou a do canto. Jantámos frente a frente, de olhos nos olhos, a conversar como gente grande, a agir de igual para igual, mesmo que em determinado momento eu o tenho ajudado a cortar um pedaço do bife mais teimoso. Não falámos sobre a escola, nem sobre o trabalho. Não falámos sobre trabalhos de casa ou tarefas domésticas. Não falámos sobre coisas de filhos ou coisas de pais. Falámos sobre futebol, sobre comida, sobre cinema, sobre o tempo e sobre a crise. Coisas de qualquer um, coisas de amigos, coisas a dois.

Naquele nosso dia percorremos lojas de roupa e de bugigangas. Comentámos cores e padrões, preços e tendências. Escolhemos juntos um boné novo que o Tiago há tanto pedia e comprámos um verde, apesar de indecisos entre esse e o cinzento. Esperamos a nossa vez na fila da farmácia e decidimos, em simultâneo, o momento certo para voltar para casa.
Então, no primeiro degrau da escada rolante para o parque de estacionamento, o Tiago, metade de mim vista do chão, pegou-me a mão e disse: «Então, gostaste da nossa primeira saída a dois?»
Acho que sorri. Acho que respondi um sim de voz fugida rumo aos olhos, reforçando a força da minha mão colada à dele, de coração cheio, quase a rebentar, por uma emoção enorme, metade de mim desfeita em orgulho aos pés dele.
Imaginei que, a partir dali, ele pegava na chave do carro e me conduzia até casa, me guiava pela estrada e me abria a porta à chegada. Imaginei que, já em casa, ele conseguiria pela primeira vez rodar por completa a chave na porta da rua, que prepararia a sala para nos sentarmos e me aconchegaria no sofá entre almofadas.
Na verdade, eu conduzi o carro no caminho, perscrutando-lhe o rosto pelo retrovisor, como faço sempre. Eu abri a porta de casa, rodando a chave automaticamente, como faço sempre. E eu preparei o sofá para nos sentarmos os dois, entre almofadas, a ver televisão de ombros encostados, como fazemos sempre. Lá pelo meio perguntei-lhe: «Estás contente com o boné novo?». Ele respondeu-me, de imediato, sem tirar os olhos da televisão: «Eu não queria assim tanto ir comprar o boné, eu queria era sair só contigo».

Daquele dia para a frente guardamos finais de tarde que são só nossos, marcamos saídas a dois que mais do que tempo exclusivo de um filho com a mãe, são momentos exclusivos de uma mãe com o seu rapaz crescido. Um pouco mais de metade de mim em altura. O dobro de mim desdobrado e multiplicado na maneira como sabe dar, e me ensina a dar, amor.



06 fevereiro 2015

A minha crónica na Lx4Kids #10



O meu avô

Desde criança que adoro o miolo do pão. Na casa dos meus avós paternos todos os dias havia um pão fresquinho enorme que ia para a mesa inteiro e que eu transformava numa gruta, com a minha mão pequenina, escavando o interior para lhe retirar o miolo.
Aquela carcaça de pão oca era depois, discretamente, colocada junto ao prato do meu avô. Ele, quando chegava à mesa, sorria e sabia bem como tinha acontecido aquela magia.

Lembro de há pouco anos, num almoço de domingo, o meu avô, sentado ao meu lado, pedir que lhe passasse um pedaço de pão. Depois, retirou o miolo e deixou pousada, junto ao prato, uma gruta oca, comendo apenas o interior que os dentes dos seus quase 90 anos lhe permitiam. Naquele momento, sei que tive perfeita noção da passagem do tempo, como se em poucos segundos desfilassem, frente aos meus olhos, as três décadas da minha vida. Uma inversão da história e dos papéis. O mundo redondo. Um percurso cíclico, sem escolha, sem desvios. O tal ciclo natural da vida que conhecemos e aceitamos, mas mantemos a uma distância perfeita para não nos assustar, para conseguirmos andar em frente, fazer coisas, procriar, tomar decisões, acordar e sair da cama, ter sonhos e lutar por eles.

Num ápice perdi idade e altura, o meu avô perdeu anos mas ganhou cabelo e, naquele almoço, eu quis ser a menina que comia o miolo e ele o avô que ficava com a côdea e nunca este contrário. Naquele domingo, quis retroceder o avanço do tempo, travá-lo, deixá-lo parado, preso, eterno, escavando a memória como o miolo do pão e enchendo a gruta da côdea como se enchem os dias da vida. Os mesmos dias tantas vezes desperdiçados, injustiçados, cheios de banalidades e de feridas, ignorando tudo aquilo que realmente importa. As nossas pessoas e a nossa história. Porque, por muito que teimemos em disfarçar, a velhice não enruga só a pele e entorpece os movimentos. A velhice dói. O tempo que fica para trás é infinitamente maior do que aquele que se encontra pela frente. Então, muda tudo! Encurtam-se as expetativas e desfocam-se as perspetivas. Há o dia seguinte e aquele adormecer. Há mais um Natal e um outro aniversário. Há os almoços de domingo, os netos, os bisnetos, as saudades de quem já não está. E pouco mais que é o quase tudo, que quando acaba sabe realmente a nada.

Então, vivemos certos de que a velhice que vemos é a velhice que seremos. E cabemos a nós, proteger quem nos criou, sabendo e sentindo, num egoísmo sem malícia, que é muito mais fácil ser cuidado do que cuidar.

O meu avô partiu há poucos dias. Era o meu último avô. Deixou-me o miolo do pão e a côdea da vida para encher. Para encher de paixão, como aquela que ele sentia pelos jogos de futebol. De amor, como o que dividiu e multiplicou com a minha avó com quem viveu, no trabalho e na família, durante mais de 60 anos. De amizade, como a que ele partilhava com tantos velhotes de boina, parecidos a ele, a quem acenava pela rua, com o carro em ponto-morto nas descidas, quando me ia buscar à escola. De serenidade, como sempre lhe conheci e que sei que herdei. Para encher de boas memórias como as revistas do jornal de domingo que me guardava, religiosamente. Para encher do melhor que podemos trazer para os dias que temos. Enquanto não formos velhos. Enquanto cuidarmos dos nossos filhos. Enquanto lhes tentamos ensinar como, um dia, fará parte dos dias deles cuidar dos nossos.


in Lx4kids Fevereiro 2015

01 fevereiro 2015

A guardar




Um regresso às origens. Os lugares de infância pequenos de mais para o que crescemos. Os cheiros, os sabores e as pessoas, grandes de mais para o tamanho das saudades.


Filme que deu origem ao livro
"O Regresso"
de Natalia Chernysheva
(Bruaá, 2014)

21 janeiro 2015

A Minha Crónica na Lx4KIDS #9




Pouco Mais de Cinco Minutos

Nas viagens do dia-a-dia somos só os dois. Os dois e as mochilas, as lancheiras, os casacos, o equipamento do futebol, um saco disto ou daquilo. Somos nós dois e a pressa da manhã. Somos nós dois e as saudades da tarde. Somos nós, pouco mais de cinco minutos de percurso, o rádio desligado e as conversas que acontecem no carro… e ficam no carro.

As viagens casa-escola e escola-casa são espaços a dois que eu e o Tiago sugamos diariamente, apesar dos escassos minutos que elas duram. Há muito que inventámos um joguinho só nosso para o final da tarde, em que cada um, à chegada, diz três coisas sobre o seu dia. Normalmente, o Tiago destaca o que almoçou, uma brincadeira especial do recreio da manhã e um golo marcado no intervalo do almoço. No entanto, os dias dele não são todos iguais! O Tiago traz muitas histórias, relata conversas completas com uma amiga já no final da tarde, recupera situações da sala de aula e explica, tim-tim por tim-tim, os recados da professora.
Dou por mim tantas vezes, no caminho trabalho-escola, a inventar coisas fantásticas sobre o meu dia para as minhas três escolhas, negando ao Tiago como os dias dos adultos podem ser assustadoramente rotineiros.

No carro, entre um cruzamento e a espera do semáforo avermelhado, damos a mão que ele não larga quando cai o verde, observamo-nos pelo espelho retrovisor fazendo caretas e piscares de olhos e matamos saudades em olhares cúmplices.
De manhã falamos do cabelo desalinhado, de como nos vamos deitar mais cedo nessa noite e de planos divertidos para o fim de semana, contando sempre os minutos que faltam para o primeiro toque. Ali, quando se fecha a tarde, com a nossa casa como destino, desligo o rádio por completo e quero ouvi-lo. Encho-o de perguntas repetidas, se teve frio, se gostou do almoço, se tem trabalhos, como se um dia de escola tivesse sido uma longa e distante viagem, cheia de aventuras e perigos.

Foi numa destas viagens que contei ao Tiago que, naquela noite, tinha o texto da Lx4Kids para escrever e ele quis logo saber o tema. Relatei-lhe algo sobre semelhanças e diferenças entre nós dois e ele procurou exemplos. Assim, lembrou que ambos gostamos de adormecer com a botija de água quente, que apreciamos chili, que adoramos ver televisão deitados no sofá tapadinhos com uma manta… Porém, o Tiago não gostou das diferenças que encontrei entre nós. Lembrei que quando tinha a idade dele era daquelas meninas com os cadernos da escola sempre impecáveis, com palavras a várias cores e os títulos sublinhados com ondinhas. O Tiago nem me deixou terminar… Percebendo logo que o meu texto iria contar dos seus tpc’s dobrados e vincados, amarrotados tantas vezes no fundo da mochila, disputou argumentos e justificações para eu não fazer de tal injustiça o tema da crónica. 

Com o carro estacionado e a chegada a casa, aquela viagem tinha falado de nós mas tinha apagado, na minha cabeça, o meu texto: “Mãe desculpa ter estragado o teu texto, mas não quero que contes isso sobre mim… Porque não escreves sobre as nossas conversas no carro?”
Quando as palavras não saem, quando as ideias não se transformam em frases, quando o que se escreve não traduz o que se pensa… remoem-se os pensamentos dias a fio e enfrenta-se o pânico da folha, ou melhor, do ecrã em branco. Ou então, trocam-se consolos e conselhos numa próxima viagem de carro a dois. Pouco mais de cinco minutos de percurso.




in Lx4kids Janeiro 2015

04 janeiro 2015

JANEIRO é o mês ideal para...

enfrentar...



escolher, definitivamente, o meu vestido de noiva




recuperar episódios pendentes de "Revenge"


ler Murakami como em todos os Janeiro's dos últimos 5 anos


ir ao teatro ver os melhores

e fechar o mês com a estreia da Gisela João no Coliseu de Lisboa